GT DO MIKE


>seje eu!
>21 aninhos, pivete ainda
>formado no CFAP ( Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, em tailandês )
>carteira na mão, pistola no coldre
>feels like atirar em vagabundo
>polícia militar do estado do rio de janeiro, abre aspas
>FÁBRICA-DE-BUCETA
>era 06 de turma, então pude escolher pra qual batalhão eu iria
>lembre-se disso
>escolhi o 23º BPM
>leblon, ipanema, gávea, são conrado
>mais tranquilo que isso só a casa da sua avó agora que ela parou de fazer suruba
>na hora da formatura, tava lá minha coroa
>batalhadora, ralou pra caralho pra me dar um futuro
>chorou vendo o filho formado com aquela farda azul
>os olhos começaram a suar o mais masculino dos suores
>depois do toque da corneta, abracei a velha, olhei pra ela e falei:
> ” agora vai ser tudo diferente mãe ”
>ela abriu um sorrisão emocionado que faria até os olhos do capeta lacrimejarem
> ” agora vai ficar tudo bem ”
>século x=(√4.10^3)+5^2-3^3 ( faz as contas, otário )
>adivinha só, vacilão?
>não ficou tudo bem
>um ano depois da minha formatura, a coroa desenvolveu uma doença
>cardiopatia reumática
>levei ela no HCPM, mas não tem recurso nem pra cuidar dos pms baleados
>imagina pra porra da minha mãe
>não teve jeito
>fui levando de clínica em clínica, buscando ajuda
>cada diagnóstico era pior que o anterior
>um dos médicos (o que mais passou confiança), disse que seria necessária uma cirurgia
>não vou falar o valor, basta dizer que era o suficiente pra tirar sua mãe, suas irmãs, suas tias e até seu avô da prostituição
>eu tinha um ano para conseguir a grana e pagar o tratamento dela, senão já sabe né?
>eis que eu tava lá, me sentindo um merda
>blitz 7h da manhã, só pra fuder trabalhador mesmo
>paro um carro com os vidros escuros
>peço a documentação
>o cidadão, cheio de marra, joga duas notas de cem no meu peito e pergunta se estamos entendidos
>o dedo do gatilho chega a coçar
>o procedimento é claro, tentativa de suborno, era deslocar para a delegacia e manter sob custódia do delegado
>olhei pra nota
>pensei em enfiar a mão na cara daquele babaca
>pensei em encher o filho da puta de porrada
>pensei na coroa, deitada na cama sem poder trabalhar
>puta que pariu
>como disse Aristóteles ” ou você se omite, ou se corrompe, ou vai pra guerra ”
>me corrompi
>peguei as notas e fiz sinal pra ele ir embora
>o babaca fez questão de dar aquele sorrisinho convencido
> vaisefuder.rar
>daria pra comprar remédios pra velha, aliviar um pouco o sofrimento
>engoli minha raiva e fui pedir permissão pro sgt pra ir comer alguma coisa
>ele faz cara de cu, mas a comida do rancho é uma merda e ele também tava com fome
>traz duas coxinhas e um mate com limão pra mim ô seu viado, disse o tal
>maldito sgt barrigudo, cansou de dar prejuízo em pizzaria
>fui no boteco comprar o maldito lanche para nós e, pelo caminho, tinha que passar por debaixo de um viaduto
>o lugar ali era carinhosamente chamado de beco da maldade, porque quem passava sempre perdia alguma coisa
>não deu outra, eu tava me aproximando quando vi uma depósito 8/10 vindo na direção oposta
>quando tava logo abaixo do viaduto, dois pivetes já enquadraram ela
>um com uma pedra na mão, uma PEDRA
>por um momento quis encher os dois de chumbo
>mas eu já sabia que se fizesse isso minha cara estaria estampada no mesmo dia lá no RJ TV
>”policial mata duas vítimas da sociedade ”
>não quero ser preso
>não posso ser preso
>com o cacetete na mão, chego na encolha para eles não me verem
>os imbecis tavam ocupados demais catando a bolsa da menina para repararem em mim
>a cacetada que eu dei na nuca do primeiro foi tão forte que ele desmaiou na hora
>acertei uma no outro, mas o pivete correu mais que trinta nordestinos atrás de rapadura e conseguiu se evadir do local
>fui segurar o gansinho que eu tinha colocado pra dormir, quando vi a menina desesperada
>congelou de medo, coisa comum
> ” eles conseguiram levar alguma coisa? ”
> ”não senhor ” ela respondeu baixinho
> ” senhor tá no céu, pode me chamar de Costa ” falei, levantando o vagabundo na marra
> ” tem que tomar mais cuidado quando andar por aqui, é perigoso, procura andar em grupo ”
> ” eu sei, não costumo pegar esse caminho, é que hoje eu tive que vir de ônibus pra faculdade e não sabia chegar lá sem ser por aqui ”
>nessa hora me liguei que a patricinha era estudante da PUC
>aquele tipinho que abraça árvore, fuma maconha e faz sarau
>beijaço fora temer, sexo anal contra o capital, marcha pela paz (e contra a policia)
>percebi que a novinha ainda estava congelada e perguntei, um pouco mais impaciente ” você vai ficar aí parada ou o quê? ”
>ela olhou nervosa e começou a gaguejar, falou que era estudante de psicologia e estava fazendo algum trabalho sobre violência
>ela explicou lá o negócio, mas eu estava ocupado demais carregando o pivetinho
>até que ela perguntou ” teria como voce me dar seu whatsapp para eu te mandar um questionário? ajudaria muito no meu trabalho ”
>olhei pra ela, desconfiado
>isso parecia caô, e pm que dá mole leva tiro
>ela reparou na minha indecisão
> ” se você topar, vai receber uma participação no valor de 500 reais ”
> abriu um sorrisinho meigo e meio desconcertado
>não tinha mais o que dizer
>passei meu número e levei ela e o marginalzinho embora do lugar
>cheguei de volta na viatura, e o sgt (vamos chama-lo de bigode) estava lá me esperando, puto
>” caralho seu viado eu te mando buscar coxinha e mate e tu me trás um ganso dormindo? puta que pariu, bota esse viado no carro e vamo embora logo daqui ”
>fui de lá até o batalhão ouvindo o trololó do bigode
>mas minha mente tava em outro lugar
>tava na novinha, cujo nome eu nem perguntei
>algo de estranho me atraia nela
>algo de diferente
>o dia tinha começado bem merda
>já fazia mais ou menos uma semana desde o episódio com a depósito lá no viaduto
>quando se é polícia, irmão, essas paradas pra você viram rotina
>ou tu acha que ela é a única mina gostosa que eu já vi em ocorrência?
>cês iam ficar malucos se vissem a quantidade de mina bonita que aparece pedindo ajuda pra policial, com a cara vermelha de tanto apanhar do namoradinho
>mas ela, mesmo não sendo a mais bonita nem a mais cheia de papo (a mina congelou, lembram?), ela me chamou a atenção de alguma forma
>passei a merda da semana olhando o tempo todo pro whatsapp, quase que o bigode me deu uma advertência
>só não me deu porque viu que eu tava no grupo de putaria dos soldados da companhia e pediu pra eu adiciona-lo
>depois do quinto dia eu tinha me estressado, já achava que ela tava só zuando com a minha cara
>mas, depois de exatos 7 dias, a filha da puta mandou a mensagem
>”oi, lembra de mim? rs… sou a Ju, você me ajudou naquele dia e ficou de participar do meu questionário? queria te ver na confeitaria colombo, lá no forte de copacabana, amanhã ”
>filha da puta
>essa maluca me chamou pra comer na confeitaria colombo
>lugarzinho de RYKO
>um salgado é papo de 30 temers
>to fudido
>mas também não vou negar, não vou dar uma de duro
>”saio do serviço às 17:30, te encontro às 18h” respondi, fria e secamente como um soldado que sou
>sem essas porras de emojizinho, viadagem do caralho
>na minha época era msn, porra
>mas por dentro tava igual um muleque
>fiquei desatento a porra do serviço inteiro, bigode chamou minha atenção de novo
>se eu desse bobeira ia dar merda, militar não pode ficar desatento
>pm então, nem pensar
>cheguei em casa no final do dia morto, abri a porta pra ver como tava minha mãe
>tava deitada na cama, com aquela cara de cansada como sempre, vendo a netflix que eu pagava com muito suor
>me olhou com um brilho nos olhos, como se soubesse que algo ia acontecer
>algo bom
>valoriza tua mãe, maluco. ela sabe da tua vida mais do que você
>foco no gt
>trouxe a quentinha da rua pra ela, e mais os remédios
>era química pesada, exigia muito do corpo dela, mas a coroa era batalhadora
>fui dormir e acordei no dia seguinte com uma disposição que eu já não tinha a muito tempo
>o serviço passou se arrastando, mas dessa vez o bigode não encheu meu saco
>acho que até o velho tinha notado algo de diferente
>mas não falou nada
>terminou o serviço
>igual um maluco eu fui pro ponto de ônibus (ahh bonitão, e tu aí achando que pm tem carro né)
>(bom, ter até tem)
>(mas não eu)
>tinha deixado no alojamento a roupa menos pior que eu tinha, junto com um perfume vagabundo
>ia quebrar o galho
>cheguei no forte um pouco atrasado, e de cara vi a moça lá me esperando
>eram 18h, o sol tava se pondo e ela tomando um suco de laranja
>que cena meu irmão, é aquele tipo de coisa que tu vê e dá vontade de tu escrever uma música mpb de tão bonita que é
>me sentei, meio envergonhado por dentro, mas sempre mantendo aquela pose
>porra, já troquei tiro com vagabundo, não ia ser um rostinho bonito que ia me intimidar
>” desculpa a demora ”, lancei
>ela me olhou de um jeito constrangido e disse que não tinha problema. puxou um notebook de dentro da bolsa e começou a fazer algumas perguntas, coisas básicas tipo nome, idade, bairro, essas paradas assim
>aí chegou uma hora que perguntou pra mim: ”por que você escolheu trabalhar em uma profissão de violência? ”
>porra moça, tá de sacanagem?
>lancei assim mesmo, ela chegou a arregalar os olhos
>tu acha que alguém escolhe ser pm ou ser bandido? tu acha que isso é uma parada que tu decide no terceiro ano do ensino médio?
>o que tu falou é certo, somos homens de violência
>mas isso nasce com a gente
>nasce e morre com a gente
>eu percebi que tinha nascido pra lutar nessa guerra quando eu era moleque
>teve um tiroteio na porta da minha escola, e lembro dos meus coleguinhas deitados no chão chorando apavorados
>e eu enojado com toda aquela viadagem
>não sou super homem e nem tenho peito de aço, mas não vou ficar choramingando se tiver que lutar
>porque a lei da selva é matar ou morrer, e isso ninguém tira do homem
>nós usamos a violência e fazemos barbáries para que outros possam viver vidas confortáveis e tranquilas
>por isso que quando eu to deprimido, eu tento pensar na quantidade de pessoas que estão dormindo tranquilamente, curtindo a vida, namorando, jogando bola, dando risada enquanto eu to de serviço
>porque a vida tem um senso de humor mórbido, e uns tem que sofrer pra outros poderem viver em paz
>quando terminei meu discurso, a mina ficou perplexa
>não conseguia dizer nada
>mas, depois de alguns segundos de tensão (onde eu comecei a me sentir um mongol por ter falado tudo isso), ela abriu um sorrisão
>começou a fazer perguntas e mais perguntas
>e eu respondendo
>mano, sabe o que é tu conversar com uma pessoa que tá genuinamente interessada naquilo que tu tá dizendo?
>que realmente quer ouvir tua história, o que tu pensa, o que tu sente?
>uma pessoa que tu pode se abrir sem ter medo de ser julgado ou perseguido?
>conversamos até anoitecer, eu só notei que estava tarde quando um soldado veio me avisar que o quartel ia fechar
>nós íamos nos despedindo quando ela olhou pra mim e sussurrou no meu ouvido
>”não queria que essa fosse a última vez que nós nos vemos. que tal nos encontrarmos aqui toda sexta nesse mesmo horário? ”
>eu sorri, involuntariamente. ” como se fosse nosso lugar especial? ”
>ela sorriu de volta e me olhou. ”isso. nosso lugar especial” ela repetiu, e deu um beijo na minha bochecha, quase encostando na minha boca
>deu uma risadinha meio tímida, virou e foi embora
>e eu fiquei olhando, vendo ela caminhar pra longe, até entrar em um táxi e desaparecer nas ruas de copacabana
>”nosso lugarzinho especial”
>ficamos nessa paumolescência por uns 6 meses
>toda sexta feira, eu ia lá e encontrava a Juliana
>no começo, eu mais ajudava o trabalho dela do que qualquer outra coisa
>trouxe depoimentos de outros policiais, gravações de operações, coisa que ela nunca iria conseguir sozinha
>podia ganhar uma nota vendendo isso pra jornalista da globo, mas preferi dar tudo de graça, na humildade
>a menina era inteligente, nem precisaria de tudo isso pra fazer um trabalho genial, mas com a minha ajuda, a pesquisa dela foi selecionada pelo governo federal e ela ganhou uma bolsa pesquisa que devia dar o dobro do meu soldo
>ela agradecia e insistia em dividir comigo, mas eu sempre recusei
>dignidade, caralho
>no serviço, nada de novo
>serviço sempre calmo, a área do meu batalhão era muito tranquila
>a coroa não demorou pra notar algo de diferente
>porra eu sempre chego em casa com a cara amarrada, e agora tava até falando manso
>”arthur… quando você vai me apresentar essa menina? ” ela perguntou
>” que menina, mãe?”
>” você acha que eu sou boba, rapaz? tá chegando em casa tarde toda sexta, com cheiro de mulher e cara de adolescente. ou tá apaixonado ou ficou maluco ”
>dei muita risada com a coroa
>ela lentamente tava melhorando, graças ao esforço que eu tava fazendo pra bancar o tratamento dela
>achei que não teria problema se eu começasse a economizar um pouquinho no dinheiro dos remédios dela
>ia dar as doses com uma frequência um pouco menor, e, com o dinheiro que eu juntasse, eu ia comprar um par de alianças para mim e pra juliana
>sim, eu ia pedir direto em noivado. vai tomar no cu, pedir em namoro é coisa de ensino médio
>óbvio que já estávamos nos pegando
>óbvio que já estavamos metendo
>(rapaz, e aquela patricinha mete muito)
>vê se pode eu pedir a mina em namoro?
>namorada de pm é puta irmão, fiel mesmo a gente pega pra casar
>e era todo dia eu com ela no whatsapp
>bigode já tinha desistido de dar esporro
>agora eu só tirava serviço em lugar cu
>perto de boteco, cheio de bêbado
>guarda de trânsito
>guarda escolar
>caguei baldes
>aquela bucetinha maldita já tinha me enfeitiçado
>quando deu 6 meses exatos, chamei ela pro nosso lugar especial
>o nosso lugar, onde nós podiamos ser quem quiséssemos, podiamos falar o que quiséssemos
>onde passamos tantas e tantas horas juntos
>eu tava usando a mesma roupa que eu usei da primeira vez que fui lá (gosto de fazer essas coisas, pra mim tudo isso tem um simbolismo muito forte)
>não sei se era por causa do nervosismo, mas nesse dia ela me parecia ainda mais linda
>conversamos, como de costume, até que, depois que anoiteceu e o brilho dos prédios começou a refletir no mar como um espelho, eu falei
>” juliana, eu preciso te contar uma coisa ”
>” fala, mô ” ela disse, daquele jeito meigo dela
>” eu sei que você sabe como você fez bem pra mim nesses últimos meses ”
> ”a única pessoa que me conhece de verdade, mais do que qualquer outra ”
> ” a única pessoa com quem eu posso realmente me abrir e confiar mais do que tudo ”
> ” seria injusto eu dizer que você não é tudo pra mim, que você não é o amor da minha vida ”
> ” e seria covarde se eu tivesse medo de assumir que te amo e que não quero mais ninguém ”
> ” quer casar comigo? ” perguntei, mostrando a ela os anéis
>ela abriu um sorriso tão largo que fez meu coração explodir
>irmão, tu sabe o que é melhor que ser feliz?
>fazer quem tu ama feliz
>porra, a carinha dela quando goza é tão linda que daria até pra eu parar de come-la só pra apreciar o rostinho dela com aquele sorrisão bobo
>quando eu mostrei os anéis, foi tipo isso
>ela cobriu o rostinho dela com as mãos e começou a chorar baixinho
> eu sorri e cheguei perto dela, sabia que ela ia reagir dessa forma
>”não precisa chorar amor, esse momento é importante pra mim também, eu to aqui contigo”
>ela continuou chorando, até que me empurrou pra longe com força. ela não tinha força o suficiente pra realmente me empurrar pra longe mas eu percebi que ela se esforçou
>” você não entende, né? ” ela perguntou
>” nada disso é real, Arthur. nada! ”
>” olha pra nós dois, arthur! meu pai é rico, é diretor na odebrecht ”
>” minha mãe é doutora e dá aula em várias faculdades prestigiosas ”
>”meu namorado, o Renan, também é rico e estuda comigo lá na PUC, temos os mesmos amigos, os mesmos contatos, a mesma vibe, tudo!”
>epa
>epa
>NAMORADO?
>QUE PORRA É ESSA, VADIA?
>fiquei encarando a fdp, esperando ela desembuchar
>”só Deus sabe o quanto eu te amo, o quanto eu te quero, tudo que eu quero é fugir e viver minha vida contigo amor”
>”mas não posso”
>”não queria que isso fosse um clichê tipo filme de a dama e o vagabundo, mas você sabe que não daria certo”
>é verdade o que ela dizia
>o coroa dela sempre me olhou atravessado
>a mãe dificilmente dirigia a palavra à mim
>preconceito escrotão mesmo, bagulho feio
>eu cagava, mas sabia que isso incomodava ela
>só não sabia que afetava ela tanto assim
>” sabe aquele trabalho que você me ajudou a fazer? ”
>” eu fui escolhida pra apresentar ele num evento estudantil patrocinado pela ONU, em Bruxelas ”
>” o vôo é amanhã ”
>” me perdoa ”
> ela levantou e começou a ir embora. ” não faz nada, não faz nada ” eu dizia pra mim mesmo, tentando me controlar
> não deu
>segurei ela pelo braço com tanta força que meus dedos marcaram a pele branca dela
>coloquei o dedo na cara dela
>” sua filha da puta ”
>” esse tempo todo tu me deu esperança, tu me fez me apegar a você”
>” fez eu te amar”
>” e agora tu faz isso? ”
>” diz que namora, que não dá pra rolar, que vai pra Bruxelas? ”
>” me solta Arthur, tá me machucando! ” ela protestou
>” você tem noção do que você fez com a minha vida? tem noção do que é brincar com o sentimento de alguém? acha que eu sou só mais um brinquedo de criança mimada que você usa até se divertir e joga fora? ”
>” me esquece Arthur! vai ser melhor para nós dois! ”
>” presta atenção no que eu vou te dizer, Juliana. se eu te encontrar de novo, eu não vou me controlar. nunca mais apareça na minha frente, e anda na sombra que é mais difícil de eu te encontrar”
>” ME SOLTA ARTHUR ” ela berrou, fazendo as pessoas em volta olharem para nós
>larguei o braço dela e ela fugiu, em prantos
>dias se passaram
>semanas
>meu rendimento no quartel só caía
>fui realocado para o administrativo
>só a rua podia curar minha depressão, e os caras me mandam pra escritório
>logo eu, policial destaque
>prestes a ser promovido
>agora tava jogando minha carreira no lixo
>odiei tudo, odiei minha vida
>odiei minha mãe, minha única responsabilidade, a única coisa que me impedia de me matar
>só encontrei conforto na bebida
>o vício cobra seu preço mano
>cada vez mais e mais do soldo ia pra bancar a bebida
>as putas
>o cigarro
>os remédios da coroa começaram a faltar
>mas ela nunca reclamou, batalhadora como é
>resistiu de cabeça em pé, sempre
>um dia desses eu saí do serviço com outros dois companheiros
>fomos ainda fardados pra um puteirinho de luxo (tipo termas) ali na região
>eu bancava as putas como se fosse burguês
>mal sabem elas que sou um merda
>essas minas são fodas, riem, dizem que te amam
>mas no fundo sabem que tu é só mais um deprimido que tá ali pra achar conforto
>conforto que elas dão, mediante ao preço delas
>foi quando eu tava levando uma pro quarto que recebi uma ligação de um vizinho
>atendi o telefone já puto
>” qual foi irmão? ”
>” sua mãe está no hospital sousa aguiar. vem urgente pra cá ” ele disse, apressadamente, antes de desligar
>o vício cobra seu preço, mano
>cheguei no hospital desesperado
>já temendo o pior
>me culpando por tudo isso, eu era um merda e eu sabia
>passei direto pelo meu vizinho e foi logo falar com o médico
>me identifiquei com dificuldade, porque tava me controlando pra não cair no chão chorando
>tudo aquilo era culpa minha, as duas pessoas mais importantes pra mim me abandonariam, eu ia ficar sozinho, e acabar me matando mais cedo ou mais tarde
>o médico me olhou com uma cara séria
>” sua mãe está em estado grave. já pedimos a transferência pro HCPM onde eles vão poder cuidar dela por mais tempo ”
>” mas ela precisa urgente de uma cirurgia para reverter seu quadro clínico
>arregalei meus olhos, sem acreditar
>” ela tá viva, doutor? ” perguntei
>”sim, mas não por muito tempo ”
>” quanto tempo eu tenho, doutor? ”
>” até o fim do ano ela precisa estar na mesa de cirurgia, senão o quadro dela vai ficar grave demais para os nossos meios atuais ”
>irmão, naquela hora eu agradeci tanto a Deus que perdi a noção do tempo e do espaço
>ouvi a voz d’Ele saindo pela boca daquele médico
>Ele tava me dando uma segunda chance
>dessa vez eu não ia falhar
>” quanto seria essa cirurgia, doutor? ” perguntei, decidido a bancar não importa o quanto custasse
> ”nas mãos de um bom cirurgião? coloca aí 85, 95k ”
>o número me acertou em cheio
>eu nunca ia conseguir arrumar essa grana
>nunca pelos meios normais, pelo menos
>perguntei se poderia falar com ela, mas ele disse que ela estava em repouso
>apenas olhei pra ela enquanto ela dormia
>naquele momento, eu já não tinha mais dúvidas
>não consegui voltar pra casa, andei pelas ruas até o amanhecer
>me apresentei no quartel com uma carta na mão
>um pedido de transferência
>para o 41º batalhão
>o encarregado me olhou assustado
>todos conhecíamos a fama do 41
>patrulhar a área mais perigosa da cidade
>complexos do Chapadão e da Pedreira
>apoiar as guarnições da Maré e do Complexo da Penha/Alemão
>o batalhão que mais via combate, só perdendo pro BOPE
>a fama corria rápido
>chegando lá, não demorou pra sentir a diferença
>saindo de um batalhão de zona sul, onde a gente só usa revólver e cacetete
>no 41 é AR-15 e FAL de luneta
>tanto pm equipado lá dentro que tu chega a tremer
>me apresentei ao comandante, como dita o figurino, e depois fui pra minha nova companhia
>”PUTA QUE PARIU NÃO ACREDITO” alguém gritou um pouco atrás de mim
>olhei pra trás e reconheci a cara de um velho amigo
>filho da puta do Yuri
>esse maluco é um animal
>no CFAP ele tirou 10 em TODOS os testes físicos
>fez estágio no BOPE
>chegou a ser convidado a fazer o curso do BOPE
>promessa da PM
>não fiquei surpreso em ver que já era cabo e tava alocado no GAT (um minibope que alguns batalhões da pm possuem pra casos excepcionais)
>” o que é que cê veio fazer no Iraque, muleque? ” ele me perguntou com aquela voz meio rouca dele, dando um tapão amigável que quase levou meu braço embora
>” cansei de ser babá de gringo e de madame, quero brincar de polícia porra! ” respondi, do jeito que ele gosta
>o cara ficou maluco
>” irmão, quinta vai ter uma operação na Kelson’s (uma favelinha lá). vamo barulhar aqueles filha da puta. cola junto do GAT que a gente te leva ”
>” por mim já fechou ”
>nos despedimos e cada um tomou seu caminho
>o comandante deu uma semana pra eu me ambientar ao batalhão
>dar uma aquecida na carcaça e praticar tiro e umas lutas lá
>quem vem de batalhões tranquilos como o meu geralmente precisava disso
>passei a semana me preparando pro nosso passeio
>chegou quinta de noite
>depois do meu expediente, fui reunir com os caras do GAT
>a rapazeada era boa, uma galera parruda, a maioria morador ou ex morador de favela, sabiam se guiar bem
>coloquei o colete e a touca ninja e peguei meu fuzil
>bora porra
>entramo nas viaturas e partimos pra lá
>chegamos voado na favela, pra aproveitar o efeito surpresa já que não tinhamos caveirão nem cobertura
>as viaturas pararam na barricada dos bandidos e já saímos disparando
>os vagabundos tentaram trocar com a gente, mas nós estávamos dando muito tiro
>confesso que fiquei com um cagaço fudido
>me abriguei e fiquei só aplicando nos marginais
>vi a tropa progredindo e eu ficando pra trás, com medo de tomar bala
>que porra é essa mermão?
>já esqueceu das merdas que tu fez?
>já esqueceu da tua mãe que tá fudida por tua causa?
>bota a cara nessa porra!
>saí do buraco que eu tava e cheguei de peito aberto
>eu e mais dois tomamos de assalto a boca lá e os vagabundos fugiram
>o resto da tropa foi caçar os marginais, e eu fiquei lá
>guarnecendo a boca
>reparei que um vagabundo baleado ainda tava vivo e cheguei nele já com a arma na cara
>” fala onde tu guarda o dinheiro que eu te mato logo, sem sofrer ”
>o verme fez careta, mas tava muito fraco pra me xingar
>dei um murro na cara dele pra ele sentir o melado descer pela testa dele
>” vai falar ou vou ter que esculachar? ”
>ele apontou pra uma sacola preta lá
>abri e vi o malote
>várias notas de 100 e 50
>lógico, era muito pouco ainda
>mas já era um bom começo
>antes de conseguir encher os bolsos com as notas, reparei alguém chegando
>era o Yuri, sozinho
>” que porra é essa Costa? Tu é bandido, mermão? ”
>” coé Yuri não é nada disso cara ”
>” nada disso o caralho ” ele disse, vindo pra cima de mim
>” eu vi tudo parceiro”
>” te trouxe pra trocar tiro e tu vem roubar vagabundo, qual foi? ”
>vendo que não tinha alternativa, expliquei minha situação pra ele
>falei tudo, desde o começo, na maior sinceridade
>no fundo a gente ainda ouvia tiros, mas com intervalos cada vez maiores
>os poucos bandidos já deviam ter fugido ou se entocado
>Yuri ouviu tudo e refletiu, ficou um bom tempo pnderando minhas palavras
>” tu vai me entregar? ”perguntei
>ele fez que não com a cabeça
>” mas nós vamos fazer um trato ” ele respondeu
>” eu sei que tu é um cara bom, puro e que não tá fazendo isso na maldade. e tu sabe que meu sonho sempre foi ser caveira ”
>” eu vou requisitar pra tu entrar pra minha unidade, o GAT. e tu vai vir em operação comigo toda semana irmão ”
>” vai trocar toda semana, com risco de morte. vai ser meu parceiro nessa guerra. vai me ajudar a me preparar pro curso do bope ”
>” em troca, eu não te deduro, e deixo tu ficar com todo o dinheiro que tu achar. e aí? tu topa? ”
>olhei bem pra cara dele
>Yuri era maluco
>tava cagando pra dinheiro, status, essas merdas
>a tara dele era matar, e o cara era bom nisso
>enfim, que escolha eu tinha?
>apertei a mão dele com firmeza, e olhei dentro dos olhos dele
>”fechado”
>semanas se passaram
>já era meados de setembro
>nesse intervalo, eu já contabilizava 8 operações
>mais de 50 kilos de cocaína apreendidos
>27 fuzis
>19 menores
>e 7 vagabundos mortos
>além de uma promoção pra cabo
>tava tudo indo bem
>já tinha separado 30k que eu arrecadei nas operações
>não era muito, mas já dava para cobrir a entrada da cirurgia
>mas nada disso se comparava ao que estava por vir
>uma bela manhã de terça, eu, Yuri (que estava mais feliz do que sua mãe vendo um álbum de pirocas angolanas) e mais 2 caras do GAT estávamos na sala de estar do batalhão
>vendo a versão pornô da operação lava-jato
>a operação leva jato
>excelente filme
>quando entra na sala o coronel, comandante do batalhão
>pera
>vocês não entenderam
>quem entrou foi um coronel
>um cara que a gente só vê em solenidade e em retrato no mural
>um cara que a gente não tem autorização nem pra chupar a piroca (tem que ser no mínimo sargento)
>o cara entrou na sala e nós imediatamente nos levantamos
>e ninguém teve a brilhante ideia de desligar a televisão
>o coronel começou a falar enquanto o pornozão rolava solto
>” essa semana uma mega operação acontecerá na área de nosso batalhão ”
>” a presença do GAT foi requisitada diretamente pelo secretário de segurança, que está impressionado com a qualidade apresentada pela unidade ”
>” os senhores irão ocupar o complexo do Chapadão, dando apoio ao BOPE ”
>” terão a semana inteira para se preparar para isso ”
>o coronel olhou com uma cara de sacana pra tv e disse, antes de sair ” à vontade, cavalheiros ”
>para os que não conhecem, o Complexo do Chapadão é uma favela localizada na zona norte do Rio
>em uma posição estratégica que dá à facção que a dominar a capacidade de lançar ataques em várias frentes simultaneamente
>uma peça chave para as três facções cariocas
>o complexo era dominado atualmente pelo Comando Vermelho, a mais violenta e competitiva das três facções
>eles não se rendiam
>e nós adorávamos
>porque não precisávamos ter pena deles quando nós os matávamos
>a inteligência dizia que haviam pelo menos 70 marginais armados na favela
>liderados por Ferrugem, o bandido bola da vez
>todos queriam ele preso, era o ”queridinho” da mídia
>” se a gente pegar esse filho da puta, nossa cara vai estar estampada na mídia, vamos passar na frente dos caveiras porra ” o Yuri dizia
>ele tinha razão, mas nunca que os caveiras iam permitir isso
>mas ele não se importava
>nem nós, nosso foco era outro
>passamos a semana inteira treinando
>dando tiro até cansar o dedo
>correndo ladeira acima, ao meio dia, com colete e fuzil
>esse tipo de brincadeira de soldado
>chegou, finalmente, o grande dia
>eserávamos no pátio do batalhão a chegada dos caveiras
>quando eles chegaram, fizeram a entrada triunfal que eles tanto gostam
>caveirão, fuzil pra caralho, máscara de caveira, farda preta, tudo
>porra, não dá pra negar, os caras são fodas
>no auge do vigor físico, no auge da capacidade
>são uma elite, e gostam de mostrar, tipo aquela mina gostosa que sabe que é gostosa e adora provocar
>ouvimos els nos zoando enquanto embarcávamos nas nossas viaturas
>”isso aí convencional, vão subir a favela de triciclo né?”
>”os caveiras matam, os convencionais carregam os defuntos ”
>” ei, convencional! pega no meu *** (isso é um gt de família) ”
>não damos uma foda
>no tiroteio vamos ver quem é quem
>Yuri está claramente ouriçado
>eu adoro esse cara, rio muito com as caras que ele faz antes das operações
>sabe quando você tá prestes a comer uma mulher, e o teu sangue esquenta?
>tu fica nervoso, mas ao mesmo tempo quer mostrar o que tem
>é mais ou menos por aí
>o comboio sai em direção ao chapadão
>na calada da noite, as ruas mais ou menos desertas
>os rapazes tão em silêncio
>Yuri senta do meu lado e puxa o assunto
>” Porra Arthur, hoje é nosso dia irmão. o dia que nós vamos mostrar do que nós somos feitos ”
>ele sabia que eu estava nervoso, e, apesar de não ser muito bom com palavras, veio me ajudar
>” irmão, tira teus problemas da cabeça. no tiroteio é tu, tua arma, o vagabundo e a arma do vagabundo ”
>” sabe por que eu gosto tanto de guerra? ”
>” porque lá não importa quem tu é, o que tu faz. a tua vida faz sentido.
>” no momento que a bala começa a voar tu descobre o quanto quer viver e o quanto tua vida vale a pena.”
>”tu acha que eu me importo com depressão, com mulher, com conta pra pagar?”
>” o que eu quero é trocar tiro com meliante, deixar corpo no chão e chegar vivo em casa. sem complicação. sem filosofia. sem nada”
>eu olhei pro muleque com um sorriso. não é que o doente tinha razão?
>” vamo deitar esses filhas da puta poha ” falei
>não precisou falar mais nada. ele abriu um sorrisão e segurou o fuzil
>logo depois, as viaturas embicaram pra dentro da favela
>os tiros de traçante atingiam os caveirões, que vinham na frente pra dar cobertura
>só rajada de traçante vermelho, parecia coisa de filme americano
>descemos do carro dando tiro já
>nós progrediamos direitinho, igual os caveiras, mas os caras tinham mais estilo
>entravam nos becos berrando
>”O CAPETA CHEGOU”
>”VIEMOS BUSCAR VOCÊS”
>”VOU BEBER O SEU SANGUE”
>até nós nos assustávamos com aquela porra
>mas funcionava
>deixamos a equipe do BOPE enfrentar os pontos fortes dos vagabundos
>mandamos metade do nosso efetivo ficar na contenção e apoiar os caveiras
>a outra metade foi comigo e com o Yuri buscar o dono do morro
>contornamos o tiroteio mais pesado até chegar na casa do filho da puta
>uma mansão pica no meio da favela
>era bem guardada pra cacete, os bandidos mais pesados e bem equipados tavam lá
>mas nós cercamos e deitamos todos eles, não teve jeito
>eu e Yuri fomos os primeiros a invadir a casa, com uma puta piscina linda, tv de não sei quantas polegadas, videogame, a porra toda mermão
>subimos as escadas e palmeamos a casa toda
>só tinha uma porta trancada
>nós olhamos um pro outro e, no trés, eu meti o pé na porta, que caiu dura no chão
>entramos no quarto e achamos o Ferrugem, com uma pistola na mão
>as duas mãos levantadas
>e, atrás dele, a esposa, a filha (devia ter uns 4 anos) e a mãe
>uma senhora, idosa já
>doente
>eu não falei nada, nem o Yuri.
>nós ficamos encarando ele, com a arma apontada pro peito dele.
>ele largou a pistola e não disse nada, pôs as mãos na cabeça e esperou
>talvez ele achasse que nós os mataríamos mas pouparíamos a família dele
>não sei
>só sei que baixei a minha arma e o Yuri fez a mesma coisa
>eu não ia matar um cara na frente da família dele, por mais que ele fosse vagabundo
>de repente, um zunido forte passa do lado da minha orelha
>fico desnorteado e me jogo no chão, junto com o Yuri
> quando levantamos, vimos o que aconteceu.
>um grupo de caveiras entrou no quarto atrás de nós e encheu o Ferrugem de bala
>o cara ainda tava vivo, estribuchando na frente da filha
>a criança toda cagada de sangue
>levantei puto, mas antes que eu pudesse abrir a boca, o Yuri levantou, mais puto ainda
>” SEUS VIADOS FILHOS DA PUTA ”
>” VOCÊS TÃO MALUCOS PORRA ”
>” ELE TINHA SE RENDIDO ”
>os caveiras cagaram, entraram no quarto rindo da nossa cara e já foram imobilizando a família do bandido
>o Yuri não deixou barato
>segurou um deles pelo braço e puxou
>” Tá dando uma de maluco, caveira? tá achando que tem algum babaca aqui? ‘
> os caveiras se viraram e enquadraram o Yuri, jogando ele contra a parede
>fui interceder mas um me puxou por trás, pelo pescoço
> ” Vocês dois acham que a gente não sabe o joguinho de vocês?? ” um deles perguntou
>” um é frustrado, quer ser caveira mas tem medo de não conseguir, então busca atenção da mídia a todo custo.”
>” O outro é um pobre coitado que fica mendigando o dinheiro de marginal”
>” Vocês são patéticos ” ele terminou, enquanto levavam a família do cara embora.
>Um caveira veio e empurrou no meu peito uma sacola grande, com mais de 100k temers dentro.
>Olhei para o Yuri, que tinha sentado no chão, e não consegui segurar as lágrimas
>consegui o dinheiro que eu precisava. mas a que custo?
>depois do incidente no Chapadão, fomos as celebridades do momento
>o BOPE, que ironia, elogiou a ”ação meritória do GAT, que demonstrou extremo profissionalismo em face do perigo”
>eu e Yuri fomos promovidos a 3º Sgts
>nossas carreiras estavam mais turbinadas que foguete da NASA
>a princípio ele não quis aceitar a promoção, depois da humilhação que sofremos na mão dos caveiras
>mas eu convenci ele que não valia a pena comprar essa briga
>”nossa guerra é outra, irmão. foca nas lutas que a gente pode vencer”
>mais cedo ou mais tarde, o inevitável acabou acontecendo
>eu e Yuri nos matriculamos no curso de operações especiais, do BOPE
>com o dinheiro que eu já tinha arrecadado, consegui pagar a cirurgia da coroa
>graças a Deus (e aos cirurgiões, é claro), deu tudo certo
>o problema tinha sido contido e ela estava estável
>agora era repouso, descansar e não expor ela a estresse
>e em seis meses ela já poderia sair de casa sozinha
>deixei ela no apartamento, sem contar que ia fazer o curso
>ela sabia se virar
>” você vai longe, arthur. vai fazer grandes coisas ” ela falou, com os olhos marejados
>tudo era motivo pra ela chorar
>”só quem pode impedir você é você mesmo”
>já era próximo de dezembro quando o curso iniciou
>não, não vou entrar em detalhes. todos já viram o filme e tem idéia de como é
>tem porrada sim, tem esculacho sim, tem tudo isso
>é uma merda, mas faz parte
>se fosse pra formar princesa, o curso seria no castelinho da Disney
>eu sofria mas sustentava
>já tava nessa guerra então era melhor mergulhar de cabeça
>mas percebia que o Yuri tava diferente
>muito diferente do que eu imaginei
>meio frio, meio distante
>”não tem mais nada pra mim lá fora irmãozinho ” ele falava
>” isso aqui é a minha vida ”
>” para de falar merda, Yuri ” eu respondi
>” tu tem uma vida toda lá fora ”
>” e um dia eu sei que tu vai encontrar uma mina que vai te fazer esquecer da guerra ” eu falei, profetizando
>lembre-se disso
>a segunda fase do curso era mais legal
>muito mais técnica e prática, aprendemos diversos procedimentos que teriam nos ajudado muito na época do GAT
>quando nos formamos, já éramos dois monstrinhos
>o BOPE costuma mandar os recém formados pra muita operação, pra aproveitar o gás insano do pós curso
>deixei muito bandido no chão, irmão
>deixei muita mãe chorando
>cheguei em casa sujo de sangue e com cheiro de morte
>a guerra cobra o seu preço, e nem sempre ele é barato
>minha vida passou a ser a guerra, fiz da morte minha religião
>cansei de entrar com o Yuri em favela e trocar tiro, e ver a morte me encarando
>como diz Nietzsche: ” atentai para, quando luta com monstros, não tornar-se a ti mesmo um monstro”
>”pois se tu olhas por muito tempo para dentro do abismo, o abismo também olha para dentro de você”
>já tinha me acostumado com aquilo, virou a minha rotina
>comecei a tratar os convencionais com o mesmo desprezo que os caveiras me tratavam no início
>é foda, irmão. é o sistema
>sem querer ser clichê mas já sendo
>isso nunca vai mudar, sempre vai haver a guerra e aqueles loucos o bastante para entrarem nela
>um belo dia, recebo uma chamada de um número oculto
>atendo e uma voz feminina fala ” me encontra no nosso lugar, no nosso horário ”
>eu conhecia aquela voz
>juliana
>nem fudendo que eu iria encontrar aquela piranha
>mas o Yuri insistiu
>” vai mano, vai ”
>” tu precisa de alguém que te ajude a largar isso ”
>matar já tinha virado nosso vício
>agora nós precisávamos de um motivo para viver
>Yuri estava desiludido como eu, mas pelo menos queria me ver bem
>muito a contragosto, fui no forte encontrá-la, no mesmo horário de sempre
>ela demorou a me reconhecer
>”o que houve com você? ” ela perguntou, assustada
>” eu disse para você não me procurar, juliana ”
>”arthur, eu preciso conversar contigo”
>”nos não temos nada para conversar, juliana”
>”a sua mãe não está bem, arthur”
>nessa hora não me contive
>puxei ela pela blusa e encarei ela
>”ela estaria muito bem se você não tivesse me largado para dar essa buceta suja para o maconheiro do seu namorado, e bancar a turista na europa”
>ela estava visivelmente chocada, mas tentou se controlar
>” arthur, você está fora de si. todos ao seu redor estão reparando. por favor, deixa eu te ajudar ”
>” me ajudar? você é a culpa de tudo isso, juliana. tudo isso.”
>” tudo que eu queria era continuar no meu batalhão, trabalhar tranquilamente e seguir minha carreira em paz ”
>” mas depois de você minha vida se tornou uma guerra, um caos que só pode ser aplacado mediante a sacrifício de sangue ”
>” e agora você, que não sabe porra nenhuma sobre nada, aparece aqui se achando a gostosona e dizendo que vai me ajudar? ”
>percebo que os olhos dela estão escorrendo lágrimas
>” me desculpa pelo que eu fiz, amor ” ela falou, com a voz embargada
>” eu nunca imaginei que você fosse se tornar nisso que você se tornou ”
>” mas eu voltei, e dessa vez quero fazer as coisas certas. você errou e eu também, tudo que eu te peço é uma chance de fazermos a coisa certa dessa vez”
>virei a cara, me recusando a olhar pra vagabunda e ouvir o que ela tinha a dizer
>” arthur ” ela falou, quase sussurrando. ” eu estou grávida ”
> naquela hora meu mundo desabou, irmão
>filha da puta
>meu primeiro impulso foi de negar e de xinga-la de todos os nomes que eu conhecia
>mas no fundo, no fundo mesmo, eu sabia que o filho era meu
>respirei fundo e me controlei
>” juliana, da última vez que nos vimos você disse que nós deveríamos nos afastar, para o meu próprio bem ”
>”hoje sou eu que digo isso para você. não chegue perto de mim se não quiser sofrer comigo ”
>” essa guerra não é sua, é minha. eu decidi entrar e eu vou sair por conta própria ”
>” vou bancar a criança e todas as necessidades dela ”
>” mas entre eu e você, já não pode rolar mais nada ”
>” me desculpe ” eu terminei, levantando e indo embora, ouvindo os soluços dela ao fundo
>a depressão bateu forte dessa vez, mas eu tinha meu remédio
>fui à caça, fui à luta
>mais operação, mais operação
>chegava em casa ensanguentado, por vezes até baleado
>nem o Yuri mais conseguia me acompanhar
>fiz meu nome no batalhão, me chamavam de ”super homem”
>segundo eles, eu botava a cara no tiroteio, como se não tivesse medo de tomar tiro
>mas eu realmente não tinha
>na verdade, seria um favor
>foi numa quinta feira que a juliana me ligou novamente
>atendi a contragosto e ouvi a voz dela me chamando com urgência para o HCPM
>sem entender nada, cheguei lá
>fui recebido por ela, consternada, e por um médico
>”o senhor é o sargento Arthur Costa da Silva? ” perguntou o doutor
>” sou eu ” respondi
>”lamento informar, mas a mãe do senhor faleceu hoje às 22:48. meus pêsames ” ele disse, se retirando antes que eu pudesse pedir mais informações
>naquela hora meu mundo desabou
>tudo ficou escuro pra mim
>a Juliana conseguiu me segurar e me arrastar para um banco
>eu estava tonto, desnorteado
>”por quê? não pode ser… ” eu me perguntava, com uma voz fraca
>” eu dei todos os remédios, paguei pela cirurgia, o que pode ter acontecido? ” eu falava comigo mesmo
>tentando me convencer que aquilo não podia ser real
>simplesmente não podia
>”sua mãe estava depressiva, arthur” a juliana me respondeu
>”ela viu no que o filho estava se tornando. você era tudo pra ela ”
>” sua motivação deixou de ser o bem estar dela para ser a guerra e a morte ”
>” ela não suportou perder você dessa forma ”
>pela primeira vez em anos, chorei
>mas chorei muito, mano
>naquela hora, eu sabia que tudo tinha perdido sentido pra mim
>o último fio que me ligava à terra, à vida, havia partido
>me deixado
>juliana me levou pra casa, cuidou de mim
>ficou comigo
>não deixou eu estourar minha cabeça naquela noite, nem na seguinte, nem na outra
>mal sabia ela que eu já estava morto por dentro
>ela se esforçava, fazia tudo pra me ver feliz
>me acordava com todo o carinho do mundo, lia comigo, escolhia filmes para vermos
>seria uma ótima esposa e com certeza será uma excelente mãe
>vai ser pro nosso filho como a minha mãe foi pra mim
>e infelizmente a criança vai crescer sem pai, igual a mim
>porque apesar de tudo, eu estava morto por dentro
>e tudo que a juliana fazia por mim só postergava o inevitável
>separei uma quantia considerável para ela, conseguiria bancar a criança por um bom tempo
>como se a juliana precisasse do meu dinheiro, enfim
>sexta feira era dia de operação
>morro da pedreira, favela perigosa
>subi com a equipe alpha, um time experiente
>ninguém ali era moleque
>e como nós dizemos, não é autorizado ao caveira tomar tiro
>somos proibidos de morrer
>caguei
>pedi para ir com a alpha para não ir com o Yuri, que é da bravo
>somos irmãos de guerra, mas não queria que ele me visse tombando
>pode parecer bobeira, mas no fim nós nos preocupamos mais com o que os outros pensam de nós
>subi o morro igual um maluco
>gritando
>barulhando
>os bandidos fugiam alucinados, como se vissem na minha imagem o próprio capeta
>deixei vários corpos caídos, enquanto procurava alguém que fosse digno de me matar
>aqueles bandidões com cara de marra foram os primeiros a correr
>eu já xingava a Deus, perguntando se era alguma maldição que tinha sobre mim
>se Ele estava me punindo, fazendo da terra o meu inferno
>foi aí que senti um calor incontrolável no meu corpo, como se me queimasse por dentro
>um tiro certeiro me atingiu debaixo do braço, na axila
>olhei para o lado para ver quem foi o valente que me alvejou
>vi um moleque, de 16 anos no máximo
>apavorado
>com medo de morrer
>sem saber o que fazia ali
>sorri, satisfeito, e caí no chão
>o meu sangue morno já ensopava minha farda, e quando meus companheiros me encontraram eu já estava delirando
>quem diria que, depois de tudo, seria um moleque que me mataria
>ia virar considerado na favela, um bandido perigoso
>ia matar muitos até que um valente o derrubasse
>ia manter meu legado
>manter viva essa guerra
>tirar muitas vidas em nome da morte
>minha missão nessa terra foi cumprida
>matar e morrer para que outros possam viver
>e quando meus olhos fecharam, pensei na minha mãe, e como tudo poderia ter sido diferente se eu e juliana não fôssemos tão bobos, naqueles encontros de sexta à tarde.
>agora já era, irmão
>me perdoa, mãe
>me perdoa filho
>me perdoa Yuri
>me perdoa amor
(Epílogo)
>o enterro do sargento Costa foi feito com toda a pompa militar que ele merecia
>discurso dos seus comandantes no BOPE, no 41º e no 23º
>homenagens da tropa
>coroas de flores no Jardim da Saudade
>entre a multidão, o sargento Yuri encontra uma moça
>segura-a pelo braço e pergunta ” você deve ser a juliana? ”
>ela faz que sim, com a cabeça, limpando o rosto das lágrimas
>o sargento não diz nada. não precisava
>arthur foi mais que seu amigo, foi seu irmão
>e lhe deixava uma última missão após partir
>cuidar de sua mulher e de seu filho
>o yuri abraçou a juliana com carinho, segurando ela firme
>e falou calmamente para a jovem
>”agora tudo vai ser diferente juliana”
>os dois choravam enquanto se abraçavam
>”agora tudo vai ficar bem”
os dois choravam enquanto se abraçavam
’’agora tudo vai ficar bem
’’